Observatório BDE para a Escravatura

Portugueses

A 550 quilómetros de casa, sem documentos nem dinheiro, o caminho de regresso torna-se difícil de encontrar. Quatro jovens portugueses estiveram três anos escravizados em Logroño, no Norte de Espanha, alojados em condições precárias e sem receber qualquer pagamento. O intermediário, também português, é acusado dos crimes de tráfico de pessoas, sequestro, escravidão e ofensas à integridade física.

Os casos repetem-se há vários anos e, diz fonte da PJ da Guarda, parecem “fotocópia” uns dos outros. No Departamento da Guarda, nos últimos três anos houve “pelo menos uma dezena de casos”. As vítimas estão sempre “num quadro de fragilidade” económica e emocional e são aliciadas com promessas de salário alto, alojamento e alimentação.

Logo que chegaram a Logroño, os quatro jovens, actualmente com idades entre 21 e 27 anos, viram ser-lhes retirados os documentos. Eram agredidos e obrigados a trabalhar todo o dia, mas no final do mês quem ficava com os salários era o intermediário. “Não temos suspeita de envolvimento de qualquer cidadão espanhol”, explica a mesma fonte da PJ.

Os jovens, que foram sendo levados em momentos diferentes, viviam em barracões “com condições degradantes”. No ano passado um deles conseguiu fugir, e foi a sua denúncia que permitiu à Polícia Judiciária iniciar a investigação, com apoio das autoridades espanholas.

Em liberdade. A investigação agora concluída recolheu indícios de que o angariador, de 27 anos, terá recrutado mais pessoas. O inquérito foi remetido pela PJ da Guarda ao Ministério Público, com proposta de dedução de acusação. O arguido aguarda o desfecho do caso em liberdade, já que não se verificavam os pressupostos para aplicar prisão preventiva – não houve flagrante delito.

Embora nos últimos anos tenham sido detectados crimes de tráfico e escravidão laboral noutros países europeus, é em Espanha que estão referenciados mais casos. A necessidade de mão-de-obra para trabalhos agrícolas contribui para haver muitas ofertas de emprego sazonal, e a proximidade é outro factor que facilita a circulação de redes de tráfico de pessoas.

O fenómeno escapa ao Observatório do Tráfico de Seres Humanos, que se centra no registo de vítimas detectadas no nosso país. O primeiro relatório do observatório, divulgado o mês passado, dá conta de 84 pessoas sinalizadas como eventuais vítimas de tráfico, na maioria mulheres – 61 contra apenas 18 homens. Se a maioria das vítimas tem nacionalidade estrangeira e é explorada sexualmente, já os agressores confirmados são quase todos portugueses (seis em sete).

O tráfico com fins laborais tem vindo a crescer e a Agência das Nações Unidas contra a Droga e o Crime avisa que o número de casos reais será 30 vezes superior aos detectados pelas autoridades. Na União Europeia, a mesma organização estima que sejam afectadas 270 mil pessoas, 10 por cento das quais menores. As mulheres são sobretudo forçadas à prostituição, enquanto os homens são obrigados a trabalhar em explorações agrícolas. Um retrato em que as vítimas portuguesas encaixam na perfeição.

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Portugal

Vêm do Vietname, da Malásia e da Tailândia para trabalhar na exploração agrícola no Alentejo. O fenómeno que apareceu pela primeira vez em 2009 é uma das grandes preocupações da Polícia Judiciária pelo risco de produção e venda de droga.

Há indivíduos destas nacionalidades aliciados a deixar o país em troca de um bom posto de trabalho e de condições salariais que ofereçam garantias à família. Porém, quando entram em Portugal vêem-se envolvidos numa rede de tráfico de seres humanos e são forçados a trabalhar em terrenos agrícolas no Alentejo. A organização principal é de nacionalidade asiática, mas trabalha directamente com redes nacionais. Contudo, os contactos multiplicam-se entre a organização e os indivíduos da mesma nacionalidade que residem em Portugal. O passo seguinte é consumar o negócio com os proprietários ou administradores de terrenos agrícolas. Todos ganham uma comissão menos as vítimas, que inicialmente não têm direito a qualquer remuneração: “Deparam-se com uma dívida que desconheciam”, explica ao i fonte da Polícia Judiciária.

Nos primeiros anos de trabalho é-lhes dito que o dinheiro a que teriam direito servirá, inicialmente, para cobrir os gastos da viagem. No entanto, quando começam a ter direito a salário, a remuneração “corresponde a valores irrisórios, como cinco ou dez euros”.

O número de vítimas envolvidas neste tipo de rede de exploração laboral tem aumentado nos últimos anos, com o desencadear da crise económica e consequente aumento da imigração ilegal. A Polícia Judiciária (PJ) sinaliza cerca de cem casos por ano. As redes asiáticas envolvem aproximadamente 30 pessoas. Contudo, têm merecido atenção especial da PJ, porque “podem originar outro fenómeno – a exploração e produção de canábis”.

De acordo com a investigação, os primeiros casos sinalizados foram no Reino Unido. “A dinâmica era igual àquela que é agora praticada em Portugal.” Porém, com uma pequena nuance: o principal objectivo era fomentar o tráfico de droga. “Construíram estufas, onde os indivíduos traficados trabalhavam diariamente para produzir quantidades enormes de canábis.” Depois do Reino Unido foi a vez da França e em 2009 chegaram a Portugal. Ainda não foi sinalizado nenhum caso de exploração de canábis no país, mas a polícia acredita que “há um risco” de isso vir acontecer. O acesso das forças policiais às vítimas é muito limitado pela sua localização geográfica. Vivem e trabalham em campos e terrenos de grandes dimensões, completamente “isolados”. Nem sempre o negócio se realiza através do proprietário do terreno, mas segundo a polícia é difícil que este não tenha qualquer conhecimento da situação.

Mesmo que mostrem vontade de regressar ao seu país, a condição económica das vítimas não o permite. Contudo, em alguns casos a organização asiática ameaça a própria família, deixando a vítima totalmente “dependente da estrutura da rede”.

A nova “envelhecida” UE A crise que começou em 2008 fez reduzir o número de casos de tráfico de seres humanos para exploração sexual, que até então representava 80% dos casos, para metade (cerca de 50%). Por outro lado, potenciou o aumento do tráfico para trabalhos forçados. Os restantes 50% dos casos sinalizados pelos órgãos policiais correspondem à exploração laboral e a mendicidade. A mudança de tendências no tráfico de seres humanos em Portugal ocorreu à imagem do que aconteceu em toda a Europa.

Joana Daniel-Wrabetz, do Observatório de Tráfico de Seres Humanos (OTSH), realça que “há vários motivos que levam uma pessoa a imigrar em busca de melhores condições laborais”. No entanto, avisa que “tem havido uma maior preocupação e atenção” das entidades responsáveis “à exploração de mão-de-obra na agricultura e ainda na indústria têxtil e construção civil”.

A Organização para a Segurança e Cooperação na Europa destaca as mudanças sociais e o envelhecimento da União Europeia como alguns dos motivos que proporcionaram o aumento da exploração laboral. “Enquanto o tráfico de mulheres para exploração sexual permanece estável, há indícios alarmantes de tráfico para trabalho forçado, que vão de obras de construção e asfalto a mendicidade e trabalho em sectores ilegais, como produção de drogas”, lê-se no relatório de 2009.

 Inês Cardoso e Cláudia Garcia, num jornal